sábado, 16 de março de 2013

Risco de se utilizar um medicamento destinado ao ser humano em animais

Uma pergunta que o Médico Veterinário deve se fazer constantemente é: há risco de se utilizar um medicamento, destinado ao ser humano, em uma outra espécie animal (cão e gato, por exemplo), extrapolando-se a posologia indicada? 

A resposta (infelizmente) será sim, na grande maioria das vezes, pois, devido a uma série de fatores, sendo os principais deles comentados ao longo deste artigo, poderão ser criadas duas circunstâncias indesejáveis: os medicamentos poderão não atingir a dose eficaz necessária (sub-dosagem), ou, então, uma situação oposta, isto é, o medicamento formulado para o ser humano quando administrado seguindo-se a mesma posologia, poderá alcançar níveis sanguíneos muito maiores em uma determinada espécie animal que aqueles que seriam os verificados no homem (super-dosagem). Considerando-se a primeira situação, imaginemos se isto acontecesse com um antimicrobiano. Neste caso este medicamento não alcançaria os níveis sanguíneos necessários para promover o efeito bacteriostático e/ou bactericida e por isto a infecção deverá progredir, podendo acarretar em sérias consequências. Por outro lado, na segunda situação, há grande risco também. Assim, se a dose para aquela espécie animal for excessiva, haverá efeitos tóxicos severos e até mesmo a morte do animal. Tal fato poderia ser verificado quando da administração de medicamentos com índice terapêutico estreito, como o da digoxina.


Mas por que ocorre isto? A variação de respostas nas quais os medicamentos são utilizados é o que distingue a farmacologia humana da veterinária. Assim, deve-se considerar que, tomando-se diferentes espécies animais, pode-se esperar que a intensidade e a duração de efeitos induzidos por uma dose fixa de um determinado medicamento deverão variar amplamente. Isto implica que a variação de respostas produzidas por uma dose fixa de medicamentos pode ser atribuída a processos farmacodinâmicos e principalmente farmacocinéticos. Portanto, é fundamental que o Médico Veterinário tenha em mente que o uso de um medicamento, na posologia indicada para uma dada espécie, ao ser extrapolada para outra espécie poderá acarretar, muitas das vezes, em consequências indesejáveis e até mesmo catastróficas. Assim, é necessário nos conscientizarmos que o estudo da farmacocinética, que deve ser realizado pela indústria farmacêutica antes de lançar no mercado o medicamento indicado para uma determinada espécie animal, é o utensílio mais seguro para responder aos questionamentos relativos à dose, intervalo de administração, influência da alimentação, entre outros fatores. Portanto, a seguir, vamos abordar alguns conceitos relativos à farmacocinética, procurando mostrar certas divergências bastante significantes entre as diferentes espécies animais, enfocando principalmente os animais de companhia, e justificando, desta maneira, o porquê da importância de se considerar a prescrição de medicamentos veterinários espécie-específicos.

Para que o medicamento produza seus efeitos é necessário que o mesmo esteja na concentração apropriada em seu sítio de ação. Por outro lado, a concentração deste medicamento no local de ação irá depender de alguns dos seguintes fatores ou parâmetros farmacocinéticos. Particularmente comentaremos aqui sobre a absorção e a eliminação.


A absorção se refere à taxa pela qual o medicamento deixa o seu sítio de administração e em que extensão ocorre. No entanto, o que irá interessar ao clínico é o conceito de biodisponibilidade, que se refere “a quantidade de medicamento de forma inalterada que atinge a circulação geral, após a administração por qualquer via”; portanto, a administração de um medicamento por via oral, intramuscular, subcutânea, nasal, inalatória, etc. dependerão de fatores que façam com que o fármaco seja completamente absorvido, atingindo o sangue; desta maneira, a disponibilidade deste fármaco irá variar, enquanto que na administração por via intravenosa esta será completa.


A aplicação dos conhecimentos de biodisponibilidade em estudos comparativos de duas ou mais formulações diferentes contendo o mesmo princípio ativo, administrado na mesma dose, pela mesma via e na mesma espécie animal, é denominado de bioequivalência. Portanto, deve-se perceber que espécies animais diferentes têm, via de regra, bioequivalências díspares, já que entre as espécies animais existem discrepâncias na biodisponibilidade para um determinado fármaco, sendo estas bastante marcantes entre monogástricos e poligástricos e entre aves e mamíferos.


 Os medicamentos são, normalmente, ácidos ou bases fracas. Assim, o grau de ionização das moléculas do fármaco está relacionado ao pH do medicamento e o pH do líquido ao redor.C
omo regra, as moléculas têm a tendência de ser ionizadas em fluido com pH oposto. Por exemplo, fármacos com caráter básico tendem a ficar retidos em fluidos ácidos, pois moléculas ionizadas não podem se movimentar por membranas por difusão passiva; assim, será necessário, nesta situação, que haja transporte ativo seletivo. O grau de ionização é particularmente importante em locais onde há alteração de pH: estômago e rins. 

 Como a principal via de administração de medicamentos para os animais é a oral e o rim é o órgão onde há maior porcentagem de eliminação de substâncias e havendo diferenças no pH nestes locais (ou seja, o pH poderá ser mais ácido ou mais básico, dependendo da espécie considerada), conclui-se que haverá diferenças significantes na absorção e na eliminação de um mesmo medicamento entre as espécies; portanto, para cada espécie animal a posologia deverá ser avaliada, pois provavelmente estes parâmetros terão características espécie-específicas, na grande maioria das vezes.


Ainda considerando-se a absorção oral de medicamentos, embora o pH do estômago de carnívoros e do homem possa não variar muito, a biodisponibilidade de um fármaco poderá ser bastante diferente. Isto ocorre porque como o intestino delgado é o principal local de absorção de medicamentos e sendo este órgão, proporcionalmente, 30% menor no cão e gato, supõe-se que a absorção das substâncias deverá, em algumas situações, ocorrer mais lentamente nos carnívoros.

 Particularmente em relação à administração oral de medicamentos para as aves, deve-se lembrar que existem significantes diferenças no trato gastrintestinal destes, tais como o papo, que poderá promover a retenção de medicamentos, retardando a biodisponibilidade do mesmo. Além disto, este local tem características próprias de pH e flora, os quais irão interferir sobremaneira na absorção do fármaco. Além disto, os intestinos das aves apresentam uma microbiota exuberante, o que poderá promover a inativação de substâncias (por hidrólise ou redução).

 Um outro parâmetro de grande relevância no estudo da farmacocinética é a Taxa de eliminação, ou seja, o processo de biotransformação associado à excreção, sendo estes diretamente relacionados ao conceito de meia-vida, que se refere “ao tempo necessário para que a concentração de uma determinada substância se reduza à metade”. Este conceito de meia-vida é fundamental para se preconizar a posologia do medicamento.

 A biotransformação consiste na transformação química do medicamento, visando favorecer a sua eliminação. Para tal é necessário que a substância se transforme em produtos mais polares. Quase que a totalidade desta reação ocorre no fígado. A biotransformação ocorre em duas fases, na fase I, haverá a conversão do medicamento original para um metabólito mais polar, por processos como oxidação, redução, hidrólise, etc; a fase II será aquela na qual este metabólito se liga a um determinado agente conjugante como o ácido glicurônico, cisteína, sulfato, tiossulfato, entre outros. 

 Considerando- se as diferentes espécies animais, pode haver grande disparidade no tempo para que ocorra a fase I, pois embora as enzimas responsáveis por este processo sejam semelhantes entre as espécies, há disparidade na concentração das mesmas; portanto haverá diferenças na extensão e velocidade em que ocorrerão estas reações. Por outro lado, as reações de fase II diferem substancialmente entre as espécies, sendo que estas reações podem ser deficientes ou ausentes em certas espécies animais. 

 Este fato tem importante implicação no uso de determinados medicamentos em Medicina Veterinária, uma vez que a ausência de conjugação do medicamento com uma determinada substância endógena poderá levar o animal a um quadro tóxico grave, conduzindo-o até mesmo ao óbito. 

 Um exemplo disto é o uso do acetaminofeno (paraminofenol ou paracetamol) em felinos. Este analgésico-antitérmico sofre a biotransformação, pelas enzimas denominadas de oxidases de função mista, sendo o produto conjugado principalmente com o ácido glicurônico. Como os felinos têm deficiência da enzima glicuroniltransferase, o acetaminofeno passa, então, a sofrer a biotransformação apenas pelas oxidases de função mista, sendo o metabólito produzido nesta reação extremamente tóxico.


 A excreção renal é a principal via de eliminação de medicamentos que têm como características serem altamente ionizados e com baixa lipossolubilidade. Pode haver uma grande variação no tempo de eliminação destas substâncias, sendo que este fato se deve, principalmente, a dois fatores: o pH urinário e o clearence (depuração) renal. Em relação ao pH, deve-se lembrar que o epitélio tubular é permeável somente a moléculas lipossolúveis e que o grau de ionização, como já abordado anteriormente, é determinado pelo pH da substância e o pH urinário. 


 Assim sendo, a eliminação do medicamento/ metabólito que está no filtrado irá depender do pH deste composto e do pH do filtrado.  Carnívoros têm pH da urina mais ácida que a do ser humano; assim, por exemplo, se um determinado medicamento possuir pH de caráter ácido, pode-se imaginar que, em relação ao ser humano, cães e gatos (e também aves) irão eliminar mais lentamente esta substância, já que formarão maior quantidade de moléculas lipossolúveis (que serão reabsorvidas nos túbulos renais), que o ser humano. 

O raciocínio inverso deve ser feito se considerarmos um medicamento que tenha caráter básico, ou seja, o filtrado urinário formará maior quantidade de moléculas hidrossolúveis (que serão rapidamente excretadas) nos carnívoros que no ser humano, tendo, portanto, meia-vida de eliminação maior nesta última espécie.


 Outro parâmetro também muito utilizado para avaliar a eliminação de substâncias via renal, é o clearence renal, definido como o volume de plasma que é completamente depurado pelos rins por unidade de tempo, sendo expresso por ml/min. 


 Este parâmetro varia de maneira acentuada entre as diferentes espécies animais. Usualmente se mede o clearence renal com a inulina, uma substância que é filtrável pelos capilares renais, mas não é secretada nem absorvida, nem tampouco exerce qualquer função no túbulo renal. Verifica-se que os cães têm uma alta taxa de filtração de inulina, comparativamente ao ser humano. 

Este fato pode ter importância para a avaliação da meia-vida de alguns medicamentos (como a gentamicina) que sofrem pouca biotransformação no organismo, sendo a taxa de eliminação renal o principal fator que determina a duração de sua ação. Portanto, comparativamente aos cães, o homem deve apresentar maior meia–vida de eliminação desses medicamentos.


Concluindo, a terapêutica veterinária progrediu de maneira espetacular, especialmente nestes últimos 20 anos, sendo a principal razão o desenvolvimento racional e específico de medicamentos para as diferentes espécies animais, a partir de moléculas empregadas na medicina humana. 


O desenvolvimento de medicamentos para uso veterinário deve-se principalmente ao conhecimento da farmacocinética de cada uma das diferentes espécies animais. 
Um outro grande fator que contribuiu sobremaneira para o sucesso no tratamento das diferentes afecções que o clínico se depara é o desenvolvimento dos novos sistemas de administrações, ou seja, das inovações galênicas, que possibilitam melhorar o acesso do medicamento no seu local de ação, controlar a chegada do(s) princípio(s) ativo(s) no sangue para otimizar as relações entre concentração e efeito (isto é, da biodisponibildade), facilitar a administração do medicamento e reduzir o número de intervenções, favorecendo a execução do tratamento completo.


Palestra proferia durante no 50ª CONPAVEPA
Boletim Informativo - Nº43 - 2005, Pág.11-15



Referências Bibliográficas


BAGGOT, J.D. Veterinary dosage forms. In: SWABRICK, J; BOYLAN J.C. Encyclopedia of pharmaceutical technology. 2ª ed.Nova York, Marcell Dekker, 2002. 
FLORIO, J.C. Absorção, distribuição, biotransformação e eliminação. In: SPINOSA, H.S.; GÓRNIAK, S.L.; BERNARDI, M.M. In; Farmacologia aplicada à Medicina Veterinária. 3ª ed., Rio de Janeiro, 2002. p. 25 – 40 
VAN MIERT, A.S.J.P.A.M. Trends in veterinary clinical and fundamental pharmacology: past and future in the Netherlands. The veterinary quaterly, v.22, p.3 – 10, 2000.

BAGGOT, J.D. Principles of drug disposition in domestic animal – The basis of veterinary clinical pharmacology. Philadelphia, W.B. Saunders Co., 1977. 



"Isso só deve ser realizado com a supervisão de profissionais da área."




FONTE: SILVANA LIMA GORNIAK